terça-feira, 24 de junho de 2014

Madrugada, través de Tutoia...


         Domingo, vivíamos as primeiras horas do dia primeiro do mês de Junho. Través de Tutoia. Depois da partida de São Luís, cada qual, assumia seu turno, os outros descansavam.

         Turno do cão é o termo náutico que denomina o espaço de tempo que um marinheiro tem que ficar de vigília na embarcação, responsável pelo barco e tripulação, geralmente entre as 2 e 4 horas da manhã. Nesse horário, muito provavelmente devido a nossa característica biológica, o cérebro utiliza para o sono profundo e reparador pois, temos hábitos diurnos. Por mais que estejamos descansados é a hora mais difícil, praticamente impossível não cochilar.

         “Toque-toque-toque”. Aos poucos fui despertando do sono leve que consegui ter. Fernando batia na gaiúta da cabine que eu pernoitava. Mesmo semidesperto, a comunicação era clara: chegara minha vez, era o meu turno. Para reforçar e certificar-se que havia despertado, chamou por mim completando com uma fisionomia nitidamente cansada: “Vá lá, é a sua vez.”

         Pedi-lhe alguns segundos para preparar-me. Vesti uma jaqueta. Por mais que estejamos numa latitude perto da linha do Equador, a noite, com o vento e ausência do sol, expostos aos elementos, sentimos frio.

         Tão logo assumi o leme verifiquei a tela do GPS. A rota traçada era muito próxima de terra, quase em colisão com pedras da entrada da barra de Tutoia. Aquilo deixou-me cabreiro. Indagava-me do porquê daquilo. Mantive o barco no rumo, como orientado, mas não conformava-me. Por que rumaríamos em direção à barra tendo a nosso bombordo (esquerda) um mar infinito e sem obstáculos e perigos à navegação?

         Aquela dúvida corroía-me interiormente. Alguma coisa estava errada. Não podia acatar uma orientação dessas sem questionar, era a vida de todos e a integridade do barco que estava em jogo. O que eu alegaria caso ocorresse um abalroamento? Aquilo deixava-me muito inquieto.

         Sabia que o Capitão Glauco jazia no sofá da cabine principal dormindo o sono dos justos, descansando de um turno longo por conta da responsabilidade inerente a ele a respeito da passagem pela barra da baía de São Marcos e os bancos de sua entrada. Sentia ter que despertá-lo, porém, o momento era oportuno, a situação, pra mim, estava começando a ficar tensa. Não podia mais calar. Com muito pesar, despertei Glauco. Na primeira tentativa, fiz de maneira tímida e não obtive êxito. Sabendo não haver outro jeito, chamei-o de forma mais eloquente, no que, prontamente e um pouco assustado respondeu levantando-se. Expliquei-lhe a situação e demonstrei minha hesitação. Explicou-me que devido aos currais de peixes, que ficavam a bombordo, devíamos, obrigatoriamente rumar por onde indicou através do GPS. Os currais são instalados na baixa-mar através de estacas verticais com redes, são uma armadilha primitiva e secular usadas pelos pescadores do nordeste brasileiro. O problema é que na maré alta os currais ficam semi submersos, invisíveis a olho nu e podem representar um grande perigo à navegação: o barco expõe suas obras vivas ficando vulnerável a esses obstáculos e isso pode causar um grande transtorno aos navegantes, desde um simples enrosco na hélice do motor até algo mais grave com o casco, ocasionando, em última instância um naufrágio.

         Sentindo que o momento requeria especial atenção, Glauco, prontamente chamou Luiz Henrique, o Saci, para reforçar a vigília. Do leme, o Capitão instruía-nos. Indicou que eu ficasse a bombordo de guarida em possíveis indícios de algum curral. Saci colocou-se defronte à luz de boreste (verde) do outro lado da embarcação, para não ofuscar nossas visões.

         O céu estava completamente limpo e nunca pude ver tantas estrelas em toda vida. Com o reforço dos dois experientes marinheiros, vi minha tensão baixar e o que no início era solitária preocupação, virara uma descontraída “caça aos currais”. Cheguei a usar uma lanterna em busca de nossos possíveis obstáculos, mas fui admoestado por Glauco sobre a inutilidade dela; comprovei na prática a orientação do Capitão. Ficamos na companhia um do outro até a passagem do ponto fatídico, cada qual em seu posto, em vigília permanente até afastar hipoteticamente o perigo. Ao final tudo correu bem e Glauco e Saci colocaram-se novamente a descansar.

Permaneci no turno, pois dali pra frente, com os fantasmas afastados, faria minha parte. Ainda com adrenalina correndo nas veias, foi muito mais fácil manter-se desperto. O que vi depois foi puro espetáculo. A partir daquela hora o sol, mansamente, haveria de nascer. No mar, tudo tem outro encanto, outra dimensão. Muito cedo, devido a ausência de montanhas ou outro obstáculo visual vertical, podemos presenciar o nascer do sol. Nenhum tipo de luz artificial ofusca sua presença precoce. O nascer e pôr do sol no mar, embarcado, é realmente algo especial e pontos fortes da navegação, não há quem passe ileso. E sucederam-se vários dias assim, cada qual um deleite, nunca repetindo-se, sempre um espetáculo à parte.

Acompanhe outros relatos sobre essa travessia cheia de belas experiências a bordo do catamarã Guina.

Abraços e bons ventos!

Nenhum comentário:

Postar um comentário