sábado, 5 de abril de 2014

Marçal Ceccon - Entrevista (parte I)


         Há algum tempo tenho a feliz oportunidade de trocar alguns e-mails com uma pessoa singular, figura muito querida e respeitada no meio náutico. Circunavegou o globo em família a bordo do Rapunzel, um veleiro de aço de 43 pés, construído especialmente para essa empreitada. Aos 43 anos largou uma sólida carreira como engenheiro mecânico na indústria automobilística e, em família, desengavetou e realizou o sonho de viajar e conhecer o mundo.

         Marçal Ceccon é o nome dele. Depois de ler alguns de seus escritos minha curiosidade e admiração cresceram enormemente e tive a ideia dessa entrevista para saber mais dessa fantástica experiência.

Marçal, quais foram as motivações que você teve quando decidiu com a família circunavegar o planeta?

Marçal Ceccon: No inicio dos anos 80 já velejávamos no mar e eu estava planejando cruzar o Atlântico em nosso  veleiro de 23 pés com um amigo. No meio desse planejamento meu amigo “desembarcou” da aventura e fiquei frustrado. Foi então que a grande ideia surgiu, porque não fazer isso com a família, minha tripulação tradicional? Aí os planos ficaram mais ousados, ao invés de cruzar o atlântico, porque não morar a bordo e dar a volta ao mundo? Afinal, esse era o sonho de todo velejador!

A preparação da família Ceccon para soltar as amarras definitivamente demorou 8 anos (1983-1991), o que vocês fizeram nesse tempo além de cuidar da construção do barco?

Em 83 começamos a construção do Rapunzel  1 um veleiro de 38 pés. Esse barco se revelou pequeno quando estávamos na fase de envernizar o interior. Acabamos  vendendo ele  começando novamente do zero o Rapunzel 2, com 43 pés, com o qual viajamos!
Enquanto construímos esses dois barcos montamos  nosso roteiro, estudamos a meteorologia  das regiões  ao longo do caminho, aprendemos a língua francesa, fomos nos desligando de compromissos, despesas, e necessidades que teriam que ser deixadas para trás. Equipamos  o barco, preparamos a família, lemos muito sobre os lugares que iriamos visitar. No final tínhamos a sensação de  que nosso espírito já estava viajando muito antes de zarparmos, e que  fisicamente ainda  estávamos  ali em casa somente para  finalizar esses compromissos para então alcançar o espírito! A realização de um sonho é um momento mágico que em um segundo apaga todo o sacrifício da preparação.

Qual o requisito primordial para largar as “amarras do sistema”?

Total cumplicidade da família. Embora em geral o sonho de viajar pelos sete mares seja sempre uma iniciativa do homem, somente a participação e concordância irrestrita da mulher e eventualmente filhos vai viabilizar o projeto, pois ele requer algumas trocas que podem ser sacrifícios individuais. É necessário, às vezes, adiar os próprios sonhos para ajudar o outro a realizar o seu!

Marçal, você possui larga experiência como capitão e percebi, através dos seus escritos, que nunca pegaram uma forte tempestade nessas andanças pelo mundo a bordo do Rapunzel. O conhecimento e interesse em meteorologia é coisa primordial ao navegador?

Sim, é fundamental  ter uma boa noção e prática na interpretação de informações meteorológicas (cartas sinóticas, avisos de mau tempo, imagens de satélite, etc.) e ter bom senso para antecipar as mudanças, ou seja fazer uma previsão de tempo momentânea. Isso vai possibilitar se preparar para as mudanças e evitar problemas. A razão de termos tido tão poucos problemas na viagem foi nossa capacidade de entender como os sistemas de tempo funcionavam em cada região.

De modo geral, é mais difícil fazer uma viagem de circunavegação hoje, ou os desafios são os mesmos?

No fundo acho que o mar será sempre o grande desafio embora,  pelos relatos que vejo dos circunavegadores atualmente, pareça que mesmo o mar está mais complicado. Em toda viagem mais recente alguém pega um “rabo de furacão”, um tsunami, ou pelo menos dias e dias de ondas de 5 a 7 metros. Nós, em 21 anos de vela no Rapunzel, jamais enfrentamos uma onda maior do que 4 ou exagerando, no máximo 5 metros durante uma noite...
O interessante é que  deveria ser o contrário, hoje com as previsões de tempo sofisticadas e disponíveis em tempo real, poderia se evitar mais facilmente esses contratempos!
Já a burocracia e custo de viagem, isso sim acho que se complicaram muito. O mundo atual com sua avidez  em controle e vigilância esta condenando aquela ideia de sair por aí “sem lenço nem documento” a um sonho utópico.
É dispensável perguntar que essa experiência marcou e, provavelmente, mudou a forma como vocês enxergam o mundo. Que reflexos psicológicos essa grande vivência despertou?

Sem dúvida foi uma experiência que mudou completamente nossos valores, nossas expectativas e nossa maneira de viver. Ser o único responsável pelo resultado de todas as suas ações torna as pessoas mais modestas , cuidadosas, menos egoístas e mais conscientes de seu lugar no mundo. Viver com a família 24 horas por dia em um espaço tão restrito como um barco nos ensina a compreensão, respeito e tolerância de forma muito profunda.
E para os filhos, participar de tudo na vida a bordo trás responsabilidade, autoconfiança e determinação como escola alguma seria capaz de ensinar. Imagine o que muda em um garoto de 13 anos, cuja única responsabilidade era ir para a escola e fazer as lições de casa, de repente estar no cockpit de um veleiro de 12 metros, no meio da noite, em pleno oceano, fazendo seu turno de vigília responsável pelo resto da família que dorme tranquila lá em baixo... É uma lição de confiança!
Vocês recomendariam a experiência de uma circunavegação à outras pessoas?

Dar a volta ao mundo não tem um significado concreto em si, é como escalar o Everest, ou cruzar o Canal da Mancha a nado, é no fundo um ato a mais na vida de seus protagonistas. Mas ao fazermos isso nos tornamos importantes para um mundo de gente, igualmente sonhadoras. Elas nos incentivam  e acompanham com entusiasmo. E quando nos veem concretizando nosso sonho provavelmente irão pensar ...“eles não desistiram...eu também não vou desistir...” e isso é importante, alimentar o espírito humano, que nunca se rende. Sim, acho que todo aquele que sente esse apelo, ou de qualquer outro sonho, deve segui-lo.
Viajar pode, em certa medida, nos amadurecer espiritualmente, você acredita nisso?
Quando se passa por qualquer experiência fora dos padrões estabelecidos com certeza mudamos internamente. Ninguém exprimiu com tanta ênfase esse sentimento como Deborah Kinley,  sobrevivente de um naufrágio: “Aquele que conheceu as alturas e os abismos nunca mais conhecera a paz. Não como o calmo coração a conhece. Um muro coberto de era, o jardim ao lado ou o velho encanto de uma rosa, e, embora volte a trilhar os caminhos humildes do homem, jamais falará a linguagem comum.” 
A sua abordagem como escritor é muito amistosa, informal e honesta, isso nos prende à leitura. Quais destinos lembram com saudades e desejariam revisitar?

Creio que é unanimidade familiar, nossos lugares inesquecíveis foram San Blás no Panamá, atol de Ahe na Polinésia Francesa, Tonga na Melanésia, Chagos no Índico e África do Sul. São nossas mais caras lembranças, locais onde ficamos mais tempo obviamente.


2 comentários:

  1. Muito legal, Ricco. Já havia lido o Marçal e gostei muito. Continue a 'saga' que servirá de incentivo prá todos nós!! Exemplo a ser seguido!!

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    1. Muito obrigado Cmte. Stark! Amanhã entra a última parte da entrevista. Eu tinha muita curiosidade de fazer essas perguntas, que maravilha saber que está gostando.

      Abraços desde a Babitonga!

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