Domingo,
vivíamos as primeiras horas do dia primeiro do mês de Junho. Través de Tutoia. Depois
da partida de São Luís, cada qual, assumia seu turno, os outros descansavam.
Turno do cão é o termo náutico que
denomina o espaço de tempo que um marinheiro tem que ficar de vigília na
embarcação, responsável pelo barco e tripulação, geralmente entre as 2 e 4
horas da manhã. Nesse horário, muito provavelmente devido a nossa característica
biológica, o cérebro utiliza para o sono profundo e reparador pois, temos
hábitos diurnos. Por mais que estejamos descansados é a hora mais difícil,
praticamente impossível não cochilar.
“Toque-toque-toque”.
Aos poucos fui despertando do sono leve que consegui ter. Fernando batia na
gaiúta da cabine que eu pernoitava. Mesmo semidesperto, a comunicação era
clara: chegara minha vez, era o meu turno. Para reforçar e certificar-se que
havia despertado, chamou por mim completando com uma fisionomia nitidamente
cansada: “Vá lá, é a sua vez.”
Pedi-lhe
alguns segundos para preparar-me. Vesti uma jaqueta. Por mais que estejamos
numa latitude perto da linha do Equador, a noite, com o vento e ausência do
sol, expostos aos elementos, sentimos frio.
Tão
logo assumi o leme verifiquei a tela do GPS. A rota traçada era muito próxima
de terra, quase em colisão com pedras da entrada da barra de Tutoia. Aquilo
deixou-me cabreiro. Indagava-me do porquê
daquilo. Mantive o barco no rumo, como orientado, mas não conformava-me. Por
que rumaríamos em direção à barra tendo a nosso bombordo (esquerda) um mar
infinito e sem obstáculos e perigos à navegação?
Aquela
dúvida corroía-me interiormente. Alguma coisa estava errada. Não podia acatar
uma orientação dessas sem questionar, era a vida de todos e a integridade do
barco que estava em jogo. O que eu alegaria caso ocorresse um abalroamento?
Aquilo deixava-me muito inquieto.
Sabia
que o Capitão Glauco jazia no sofá da cabine principal dormindo o sono dos
justos, descansando de um turno longo por conta da responsabilidade inerente a
ele a respeito da passagem pela barra da baía de São Marcos e os bancos de sua
entrada. Sentia ter que despertá-lo, porém, o momento era oportuno, a situação,
pra mim, estava começando a ficar tensa. Não podia mais calar. Com muito pesar,
despertei Glauco. Na primeira tentativa, fiz de maneira tímida e não obtive
êxito. Sabendo não haver outro jeito, chamei-o de forma mais eloquente, no que,
prontamente e um pouco assustado respondeu levantando-se. Expliquei-lhe a situação
e demonstrei minha hesitação. Explicou-me que devido aos currais de peixes, que
ficavam a bombordo, devíamos, obrigatoriamente rumar por onde indicou através
do GPS. Os currais são instalados na baixa-mar através de estacas verticais com
redes, são uma armadilha primitiva e secular usadas pelos pescadores do
nordeste brasileiro. O problema é que na maré alta os currais ficam semi submersos,
invisíveis a olho nu e podem representar um grande perigo à navegação: o barco expõe
suas obras vivas ficando vulnerável a esses obstáculos e isso pode causar um grande
transtorno aos navegantes, desde um simples enrosco na hélice do motor até algo
mais grave com o casco, ocasionando, em última instância um naufrágio.
Sentindo
que o momento requeria especial atenção, Glauco, prontamente chamou Luiz
Henrique, o Saci, para reforçar a vigília. Do leme, o Capitão instruía-nos.
Indicou que eu ficasse a bombordo de guarida em possíveis indícios de algum
curral. Saci colocou-se defronte à luz de boreste (verde) do outro lado da
embarcação, para não ofuscar nossas visões.
O
céu estava completamente limpo e nunca pude ver tantas estrelas em toda vida.
Com o reforço dos dois experientes marinheiros, vi minha tensão baixar e o que
no início era solitária preocupação, virara uma descontraída “caça aos currais”.
Cheguei a usar uma lanterna em busca de nossos possíveis obstáculos, mas fui
admoestado por Glauco sobre a inutilidade dela; comprovei na prática a
orientação do Capitão. Ficamos na companhia um do outro até a passagem do ponto
fatídico, cada qual em seu posto, em vigília permanente até afastar hipoteticamente
o perigo. Ao final tudo correu bem e Glauco e Saci colocaram-se novamente a
descansar.
Permaneci no turno,
pois dali pra frente, com os fantasmas afastados, faria minha parte. Ainda com
adrenalina correndo nas veias, foi muito mais fácil manter-se desperto. O que
vi depois foi puro espetáculo. A partir daquela hora o sol, mansamente, haveria
de nascer. No mar, tudo tem outro encanto, outra dimensão. Muito cedo, devido a
ausência de montanhas ou outro obstáculo visual vertical, podemos presenciar o
nascer do sol. Nenhum tipo de luz artificial ofusca sua presença precoce. O
nascer e pôr do sol no mar, embarcado, é realmente algo especial e pontos fortes
da navegação, não há quem passe ileso. E sucederam-se vários dias assim, cada
qual um deleite, nunca repetindo-se, sempre um espetáculo à parte.
Acompanhe outros
relatos sobre essa travessia cheia de belas experiências a bordo do catamarã Guina.
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